segunda-feira, 8 de agosto de 2011

CHÃO, GIZ, MURO, FITA







Em uma pequena parte da tarde de parquinho das crianças de 3/4 anos e com grande vontade de desenhar, sentei-me no chão em uma das áreas externas da escola com as crianças e, juntas, começamos a riscá-lo com giz. Não tive a intenção de reunir todos para que desenhassem, deixei-os bem à vontade para escolherem suas brincadeiras. Tudo começou naquele instante e, de maneira despretensiosa, desejei apenas sentar-me no chão e fazer uso do giz. Tracei caminhos, ou veias (que também são vias). Gostei de estar com o corpo largado, meio sem modos, despreocupada se a calça preta estava sendo marcada pelo pó branco. Sentir meu corpo tão presente no chão é uma das coisas de que mais gosto enquanto desenho. Por isso, troco pequenos papéis por espaços bem maiores onde meus gestos e minhas possibilidades possam ser ampliados e, de certa forma, liberados para uma inteireza de ações corporais. Por pouco mais de uma hora daquela tarde eu e várias meninas e meninos desenhamos no parquinho.


Desenhar em chãos, paredes, faz parte do cotidiano de inúmeras escolas, sobretudo as de Educação Infantil. Quando estão, por exemplo, com giz em áreas externas, os pequenos geralmente traçam linhas e produzem imagens com grande riqueza gestual. Além disso, os desenhos podem virar brinquedos, caminhos (como se fossem cordas ou pontes para andar sobre)... Com papéis, nem sempre é permitido ousar muito. Dependendo das propostas, as crianças são orientadas a respeitar determinados limites como: não preencher áreas que excedam seu contorno, não furá-los, rasgá-los e amassá-los. No chão, não existem grandes preocupações com limites e posições de fazer. Apesar de o chão ter também seus limites, o corpo fica mais à vontade e com isso há condições para aumentar as possibilidades expressivas.

Durante a ação, percebendo a presença das crianças sobre o desenho de caminhos, decidi contornar partes de seus pés, cadarços, pernas. Ao invés de pedir que liberassem partes do chão para que minhas linhas pudessem existir, incorporei, fazendo marcações com giz, suas presenças. Respeitei a permanência de seus corpos fazendo desvios no percurso. Em outros momentos, o que tocava o chão virou trecho do caminho, como meu cachecol que foi marcado por uma das crianças e o comprido cadarço do tênis de uma menina.

Muitos perguntaram o que estávamos fazendo e algumas crianças colaboraram com a construção de certas paisagens. Ao lado de estradas, um menino fez nuvens e uma menina desenhou grama em uma das margens.

No dia seguinte, pela manhã, com outras crianças na mesma área externa, levei um rolo de fita crepe para novamente desenhar. Desta vez, estavam reunidas, também no tempo de parquinho, crianças de 1 a 4 anos. Ao invés de pigmentar com giz, optei pela fita, pois quis experimentar outra possibilidade de intervenção. Iniciei o uso marcando os trechos do caminho feito no dia anterior. Uma criança de 1 ano, depois que colei vários pedaços, retirou toda a fita. Decidi então marcar uma parede. Este movimento despertou a curiosidade de muitas crianças. Logo, começaram a pedir pedaços de fita para fixar no muro. Parei, então, de desenhar para fornecer o material. A participação foi crescendo e rapidamente o muro foi sendo preenchido pelas linhas brancas. Muitas das crianças tiveram certa dificuldade ao usarem a fita, o que não as desmotivou.

Ocorreu-me, num certo instante, enquanto observava a ação, marcar o contorno dos corpos das crianças no muro. Muitos, na posição que escolhiam, ficaram por certo tempo encostados na parede enquanto eu passava a fita em volta deles. Encontrei uma forma de revelar ainda mais a presença de seus corpos naquela intervenção.

FALANDO SOBRE MUROS E FITAS

Muros servem para dividir espaços, indicar limites, definir propriedades.

Além das funções anteriormente apresentadas, é possível pensar em muros como potentes suportes para ocupações criativas. Artistas, comerciantes e outros preenchem os presentes nas cidades com finalidades variadas. Nas escolas, paredes são usadas constantemente como espécies de painéis para expor trabalhos produzidos por dicentes. Porém, nem sempre educadores e membros das equipes escolares concebem-nas como espaços que podem ser reinventados. Dessa forma, certas apropriações são vistas, por serem incomuns, com certo estranhamento. As opiniões dos espectadores dividem-se: há quem ache legal, tem gente que não gosta e há até quem fique indiferente (por mais estranho que pareça, já vi atitudes de indiferença apesar das grandes dimensões de suportes ocupados).

Ao desenharmos com fitas na grande parede da UMEI, criamos estratégias outras de comunicação. Porém, as mensagens também recebem contribuição dos espectadores/passantes e podem ter múltiplo sentidos. Além disso, vale lembrar que, nas instituições educacionais, do material escolar, passando pela organização dos espaços, pelos relacionamentos, pelos modos de compartilhamento, tudo remete ao sentido, aos modos de subjetivação e de invenção ou reprodução social (GARROCHO, 2011).

Da mesma forma que o uso diferenciado de muros provoca reações controversas, a fita também gerou algumas polêmicas. Utilizada quase sempre apenas para colar e emendar, uma colega, presente no momento do desenho, disse: “acho um desperdício usar a fita para isso”. Prontamente, respondi que considerava desperdício usar mal os materiais, o que não era o caso. Percebi, pela reação da professora, que ocorreu, ao usarmos a fita para aquele fim, um movimento transgressor, pois retiramos de um determinado material seu uso ultra reconhecido. Tomarei emprestadas as palavras de Glaucia Proença Lara para caracterizar a natureza da transgressão ocorrida (LARA, 2009),

Embora transgredir seja um termo forte, tomado no sentido corrente como "desobedecer a, deixar de cumprir, infringir, violar, postergar", como consta no Novo Dicionário da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986, p. 1701), preferimos tomá-lo nesta outra acepção, também presente no mesmo dicionário: "Passar além de, atravessar", o que (...) implica ir além de um dado gênero, ultrapassá-lo para construir outros (novos) efeitos de sentido.

Assim como um lápis que pigmenta, a fita serviu como material de interferência no suporte muro. Na arte, sobretudo na contemporânea, múltiplos artistas reinventam espaços, objetos, apropriam-se com grande criatividade de diversos elementos do mundo e promovem, com isso, transformações que desafiam culturas fortemente estabelecidas.

Relacionar os movimentos da arte, especialmente da atual, com a educação dos pequeninos traz, apesar dos desafios que nem sempre são pequenos, valiosas contribuições para superarmos olhares e posturas que, engessados progressivamente por tantas convenções, acabam sendo, ainda que contra a nossa vontade, transmitidos para aqueles que estão começando a viver e a significar o mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS e SUGESTÕES DE LEITURA

CAMPBELL, Brígida e NADA, Marcelo-Terça (orgs.). Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos – ações poéticas do Poro. São Paulo: Radical, 2011

Coletivo Xepa. Projetar e projetar-se: desenho como projeto de algo a saber. Workshop realizado no evento DESENHO; Ceia - Centro de Experimentação e Informação de Arte. Espaço 104 - Belo Horizonte/MG - Julho de 2010. Disponível em: < http://coletivoxepa.blogspot.com/2010/07/projetar-e-projetar-se-desenho-como_7269.html>. Acesso em 20 de maio de 2011

GARROCHO, Luiz Carlos. Como a educação elimina a criatividade: uma conferência de Ken Robinson. Disponível em: <http://culturadobrincar.redezero.org/>. Acesso em: 20 de maio de 2011

LARA, Glaucia Muniz Proença. Abordando os gêneros do discurso na escola: um espaço para a transgressão? Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/Vertentes34/Glaucia%20Lara.pdf>. Acesso em 20 de maio de 2011

SÁ, Rubens Pileggi. Ainda o corpo na arte. Disponível em:

<http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/000092.html>. Acesso em 18 de maio de 2011

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA AMAE EDUCANDO, ED.381, COM O TÍTULO DADO PELA REVISTA "ARTE SEM LIMITES"